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apneia do sono na infância sinais que começam na boca

Apneia do sono na infância: sinais que começam na boca

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    Quando o sono das crianças alerta através da boca

    A apneia obstrutiva do sono (AOS) pediátrica é um distúrbio respiratório do sono que afeta cerca de 1–5% das crianças, com pico de incidência na idade pré-escolar (2–8 anos). Diferentemente dos adultos, os sinais e sintomas em crianças podem ser mais subtis ou atípicos, o que contribui para um alto índice de casos não diagnosticados na infância. A AOS infantil não tratada está associada a consequências graves no desenvolvimento cognitivo, comportamental e físico da criança (por exemplo, dificuldades de aprendizagem, problemas de crescimento), reforçando a importância do diagnóstico precoce. Curiosamente, muitos dos primeiros indícios de AOS em crianças manifestam-se na cavidade oral e nas estruturas craniofaciais, onde dentistas e ortodontistas, que avaliam rotineiramente pacientes pediátricos, podem identificar “sinais que começam na boca” e encaminhar a criança para avaliação e tratamento adequados.

    Sinais orais e craniofaciais associados à AOS infantil

    Vários estudos científicos têm demonstrado correlações entre AOS pediátrica e características orais ou faciais identificáveis em exame odontológico. Entre os principais sinais e alterações orais/craniofaciais associadas à apneia do sono em crianças destacam-se:

    • Respiração oral crónica – Crianças com obstrução nasofaríngea (devido, por exemplo, à hipertrofia de adenoides) tendem a respirar pela boca continuamente, especialmente durante o sono. Esse hábito de respiração bucal persistente está ligado a alterações do crescimento facial e da arcada dentária, pois a falta de respiração nasal adequada pode levar a adaptações anatómicas que estreitam as vias aéreas. A chamada “fácies adenoideana” (face alongada com boca entreaberta) é um fenótipo clássico de respirador bucal crónico em crianças com via aérea superior obstruída.

    • Maxila estreita e palato ogival (alto) – Um arco maxilar transversalmente deficiente, com palato em ogiva (vaulted palate), é frequentemente observado em crianças com AOS. O céu da boca alto e estreito relaciona-se ao posicionamento baixo da língua (devido à respiração oral) e à menor passagem de ar nasal, fazendo parte do conjunto de alterações craniofaciais típicas da AOS pediátrica. Estudos de revisão sistemática confirmam que crianças com AOS tendem a apresentar maxilas mais estreitas em comparação a crianças sem AOS. Muitas vezes, encontram-se também mordidas cruzadas posteriores associadas, devido ao estreitamento do palato.

    • Retrognatismo mandibular e face alongada – Alterações no crescimento mandibular e no padrão de crescimento facial vertical estão associadas à apneia do sono na infância. Crianças com AOS exibem frequentemente uma mandíbula posicionada mais para trás (retrognatismo) e um aumento do ângulo mandibular ou altura facial inferior (face mais alongada). Essa configuração craniofacial – muitas vezes referida como facies adenoideana quando combinada com respiração oral – contribui para estreitamento da via aérea. Uma meta-análise recente reforçou que crianças com AOS tendem a ter mandíbula retruída e padrão facial vertical aumentado, embora as diferenças médias sejam pequenas. Em termos ortodônticos, é comum a identificação de maloclusão de Classe II (relação maxilo-mandibular desarmónica) nesses pacientes.

    • Sobressaliência aumentada (overjet) e mordida aberta – Derivado do retrognatismo ou posicionamento alterado da língua, crianças com AOS podem apresentar overjet aumentado (incisivos superiores projetados à frente dos inferiores) e até mordida aberta anterior. Tais maloclusões refletem desequilíbrios musculares e de crescimento associados à respiração oral crónica e à menor tonicidade muscular durante o sono. Na literatura, tem sido apontado que overjet acentuado e mordida aberta ocorrem com maior frequência em crianças com AOS em comparação a controles, embora nem todos os estudos concordem quanto à magnitude dessa associação.

    • Hipertrofia de amígdalas e adenoides – O aumento do tecido linfóide da orofaringe (amígdalas palatinas) e da nasofaringe (adenoides) é reconhecido como o fator de risco anatómico mais comum para AOS pediátrica. Dentistas ou médicos podem visualizar amígdalas muito volumosas ao examinar a orofaringe da criança. A hipertrofia adenotonsilar leva à obstrução mecânica das vias aéreas superiores, resultando em ronco e apneias durante o sono. De facto, amígdalas/adenoides aumentadas em crianças frequentemente causam respiração oral e contribuem para as alterações craniofaciais mencionadas acima. A remoção cirúrgica (adenoamigdalectomia) é o tratamento de primeira linha em muitos casos de AOS infantil, corroborando o papel central dessa causa anatómica.

    • Bruxismo do sono e outros hábitos orais – Há evidências de relação entre bruxismo em crianças (ranger ou apertar os dentes durante o sono) e AOS. Estudos indicam que a prevalência de apneia é maior em crianças com bruxismo do que naquelas sem o hábito. Num estudo com pré-escolares brasileiros, ~11% das crianças com bruxismo também apresentavam síndrome de apneia obstrutiva, indicando associação estatisticamente significativa entre as duas condições. Relatos clínicos também sugerem que outras parafunções orais, como sucção de dedo, assim como dores na articulação temporomandibular ao despertar, podem aparecer com maior frequência em crianças com AOS. Esses achados reforçam o papel do dentista: bruxismo e desgastes dentários em crianças devem acender o alerta para investigação de possíveis distúrbios respiratórios do sono.

    Em conjunto, essas características configuram um fenótipo craniofacial típico – embora não exclusivo – de crianças com apneia do sono. É importante salientar que a presença de um ou mais dos sinais acima não confirma o diagnóstico de AOS, mas indica a necessidade de investigação mais aprofundada. Os dentistas, ao depararem-se com essas alterações, podem atuar como sentinelas na identificação precoce do problema.

    quando o sono das crianças alerta através da boca

    Papel do dentista na deteção precoce

    O cirurgião-dentista (incluindo odontopediatras e ortodontistas) desempenha um papel fundamental na identificação precoce da apneia do sono infantil. Por avaliarem crianças com regularidade (em consultas preventivas semestrais ou anuais), os profissionais de saúde oral estão em posição privilegiada para notar alterações orais e craniofaciais suspeitas antes mesmo que os pais ou pediatras percebam um problema.

    Segundo diretrizes da Academia Americana de Odontopediatria (AAPD), o dentista deve, em cada exame clínico de rotina, atentar para sinais que possam levantar suspeita de AOS na criança. Isso inclui: avaliação do tamanho das amígdalas palatinas (p. ex., classificando a obstrução da orofaringe pelo índice de Mallampati ou pelo escore de Brodsky), posição da língua e palato (índice de Friedman), padrão de respiração (bucal ou nasal) e oclusão dentária. A própria história clínica deve incluir perguntas aos pais sobre sintomas do sono, como ronco alto frequente, pausas respiratórias observadas, sono agitado, posições anómalas de dormir, sonolência diurna, dificuldades escolares ou mesmo enurese – todos potenciais indícios de apneia do sono na infância. Ferramentas de triagem, como questionários validados (ex: Pediatric Sleep Questionnaire – PSQ), também podem ser empregadas pelo dentista para identificar crianças de alto risco.

    Quando sinais e sintomas sugerem AOS, o dentista deve encaminhar a criança a um médico especialista (geralmente otorrinolaringologista ou médico do sono) para avaliação diagnóstica completa. O diagnóstico formal de AOS requer exame polissonográfico (estudo do sono) conduzido por equipa médica. Assim, o dentista atua como um elemento de triagem e referência, integrando-se a uma abordagem multidisciplinar. De facto, a literatura incentiva a integração de dentistas/ortodontistas na equipa transdisciplinar de saúde do sono pediátrica, dada a contribuição que podem oferecer na triagem e até no tratamento coadjuvante de casos seleccionados.

    Além da deteção, o dentista pode contribuir no manejo de fatores orais que agravam a AOS. Por exemplo, em crianças com maxila muito estreita e mordida cruzada, a expansão rápida da maxila (ERM) realizada pelo ortodontista pode ampliar o espaço da arcada e da cavidade nasal, melhorando a passagem de ar. Aparelhos intraorais funcionais de avanço mandibular (semelhantes aos usados em adultos com AOS) também têm sido propostos para crianças com retrognatismo, visando aumentar o espaço faríngeo durante o sono. Contudo, é importante notar que a evidência científica ainda é limitada quanto à eficácia isolada dessas intervenções odontológicas em resolver completamente a apneia do sono infantil. As melhorias observadas tendem a ser parciais e devem ser acompanhadas a longo prazo. Assim, o tratamento principal da AOS pediátrica permanece sob responsabilidade médica, com medidas como adenotonsilectomia, terapia posicional, uso de pressão positiva (CPAP) ou manejo de alergias, cabendo ao dentista apoiar nos aspetos orofaciais e acompanhar o desenvolvimento das vias aéreas da criança em crescimento.

    Em suma, o dentista é um aliado crucial na luta contra a AOS infantil: ao reconhecer precocemente os “sinais que começam na boca”, ele pode catalisar o diagnóstico e intervenção oportunos, prevenindo complicações futuras.

    Consequências do diagnóstico tardio da AOS infantil

    A detecção precoce e tratamento adequado da apneia do sono em crianças é vital para evitar uma série de consequências negativas. Caso a AOS passe despercebida por muito tempo ou permaneça sem tratamento, a criança pode sofrer diversos impactos em sua saúde e qualidade de vida, incluindo:

    • Déficits neurocognitivos e comportamentais: A privação crónica de sono de qualidade afeta o cérebro infantil em desenvolvimento. Crianças com AOS não tratada frequentemente exibem hiperatividade, défice de atenção, irritabilidade e baixo desempenho escolar, sintomas que podem ser erroneamente atribuídos a transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) ou outros distúrbios. Problemas de comportamento, agressividade e dificuldades de aprendizado são relatados como comuns nesses pacientes. Em casos de AOS grave, estudos demonstram redução de QI e funções executivas, além de sonolência diurna excessiva que prejudica a concentração. Ou seja, a apneia do sono não tratada pode comprometer significativamente o desenvolvimento neuropsicológico da criança.

    • Atraso de crescimento e falha em prosperar: O sono profundo e contínuo é fundamental para a liberação do hormônio do crescimento (GH) e outros processos anabólicos. Crianças com AOS severa costumam apresentar crescimento físico abaixo do esperado e até failure to thrive (falha em prosperar), decorrente do sono fragmentado e gasto energético aumentado durante as apneias. A hormona de crescimento pode estar suprimida devido às microdespertares frequentes e hipóxias intermitentes. Com tratamento adequado da AOS (por exemplo, remoção de amígdalas/adenoides), muitas vezes observa-se melhoria no ganho de peso e estatura, evidenciando que a condição estava interferindo no desenvolvimento normal da criança.

    • Enurese noturna: Fazer xixi na cama à noite é um sintoma relatado em crianças com apneia do sono. A enurese noturna tem associação significativa com distúrbios respiratórios do sono, possivelmente ligada a desequilíbrios hormonais noturnos e despertares não percebidos. Quando a AOS é tratada, os episódios de enurese tendem a diminuir, sugerindo que o sono fragmentado e o esforço respiratório contribuíam para a perda involuntária de urina.

    • Problemas cardiovasculares e metabólicos a longo prazo: A AOS não é apenas um distúrbio do sono – os seus efeitos sistémicos podem acompanhar a criança até à vida adulta. Crianças com apneia do sono persistentemente não tratada têm maior risco de desenvolver hipertensão arterial, resistência à insulina, obesidade e doenças cardiovasculares precoces. Estudos de seguimento indicam que muitas crianças com AOS continuam a ter distúrbios respiratórios do sono na adolescência e idade adulta, especialmente se fatores de risco como obesidade coexistirem. Com isso, há maior probabilidade de esses indivíduos jovens apresentarem doença cardiovascular, hipertensão e síndrome metabólica em idades mais precoces. Em essência, o não tratamento da AOS infantil pode significar incubar futuros adultos com apnea do sono e suas complicações associadas.

    • Complicações anestésicas e perioperatórias: Um perigo pouco reconhecido do diagnóstico tardio é que uma criança com AOS não identificada enfrenta risco aumentado em situações de sedação ou anestesia geral. Devido à propensão à obstrução das vias aéreas, tais crianças podem sofrer eventos respiratórios graves durante procedimentos médicos – há relatos de paragens respiratórias e dessaturações significativas em pacientes pediátricos com AOS não diagnosticada submetidos à anestesia. Por isso, saber previamente do diagnóstico de AOS permite tomar precauções extras em cirurgias e evitar medicações depressoras respiratórias quando possível.

    • Déficits neurológicos graves (em casos extremos): Embora raro, a literatura médica regista que AOS infantil grave e prolongada, se não tratada, pode levar a complicações neurológicas sérias, como danos cerebrais por hipóxia repetitiva, convulsões e até coma. Esses cenários ocorrem tipicamente em casos extremos ou em crianças com comorbilidades, mas ilustram o espectro de severidade que o distúrbio do sono pode alcançar se ignorado.

    • Efeitos na saúde bucal: Indiretamente, a apneia do sono afeta também a saúde oral da criança. O sono perturbado e a respiração oral estão ligados a maior incidência de cáries e inflamação gengival, devido à secura bucal e alteração na salivação durante a noite. Além disso, o bruxismo secundário à AOS causa desgaste do esmalte dentário e pode levar a dores na articulação temporomandibular (DTM) e musculatura facial. Assim, problemas odontológicos como attrition dentária e má-oclusão podem tanto ser sinais da AOS quanto consequências agravadas por sua persistência.

    Em conclusão, um diagnóstico tardio ou perdido de apneia do sono infantil pode ter repercussões amplas, indo desde problemas comportamentais e escolares até comprometimento do crescimento físico e riscos médicos graves no futuro. Por isso, reforça-se a necessidade de vigilância dos profissionais de saúde – em especial dentistas, médicos pediatras e otorrinolaringologistas – para que trabalhem em conjunto na deteção precoce e intervenção na AOS pediátrica. Identificar os “sinais que começam na boca” em tempo hábil pode evitar anos de sofrimento silencioso da criança e proporcionar um desenvolvimento mais saudável e pleno.

    Referências Científicas

    https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28018794/

    https://aadsm.org/journal/review_article_issue_54.php#:~:text=Habitual%20snoring%20%28snoring%20,OSA%20in%20many%20children%20remain

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