Abres a gaveta da casa de banho e encontras “fluoreto” em quase todas as pastas. Uns aplaudem, outros franzem o sobrolho. Entre promessas e receios, vale a pergunta simples: qual é a dose certa — e quão seguro é, aqui em Portugal? A boa notícia é que já não precisamos de navegar por opiniões. A ciência e as recomendações nacionais e europeias são claras, desde que respeites duas ideias-chave: contacto frequente e de baixa dose e quantidade adequada à idade.
Porque é que o flúor funciona
Não há truques. O flúor atua sobretudo à superfície do dente, nesse vaivém diário entre perda e ganho de minerais. Quando o esmalte sofre um “ataque ácido” (refeições, bebidas açucaradas/ácidas), perde cálcio e fosfato. Ao escovares com dentífrico fluoretado, deixas um fino “filme” que ajuda a reincorporar esses minerais e a formar cristais mais resistentes. Ao mesmo tempo, o flúor abranda a desmineralização nos próximos ataques e dificulta a produção de ácido por parte das bactérias cariogénicas. O que resulta disto? Menos cárie ao longo do tempo, especialmente quando o flúor está presente todos os dias, duas vezes por dia. O efeito é predominantemente tópico: conta o que fica na boca, não “o que entra no corpo”.
Dose certa por idade: o consenso que interessa
Em Portugal, as orientações alinham com a evidência europeia. Em crianças pequenas, o foco é usar pasta suficiente para proteger, mas pouca o bastante para não ser engolida em excesso. Até cerca dos três anos, a recomendação é uma pasta com cerca de 1000 ppm de flúor, em quantidade equivalente a um “grão de arroz” e sempre com supervisão de um adulto. Dos 3 aos 6 anos, mantém-se a gama de 1000–1450 ppm, agora na porção do “tamanho de uma ervilha” e já a treinar o “cuspir sem engolir”. A partir dos seis anos — e nos adultos — a referência torna-se direta: 1450 ppm, aplicado numa linha fina ao longo das cerdas. Em situações de risco elevado de cárie (historial de lesões, ortodontia, boca seca, dieta muito açucarada), o profissional pode indicar concentrações superiores ou vernizes aplicados em consulta. O padrão que a literatura repete é nítido: ≥1000 ppm é o limiar a partir do qual surgem reduções consistentes de cárie quando comparado com pastas sem flúor ou com teores muito baixos.

Mitos que persistem… e o que mostram os dados
“A pasta com flúor faz mal porque vai para o organismo.” A escovagem é contacto breve; a maior parte é cuspida, e o remanescente é mínimo. Usando concentração apropriada e quantidade certa, o risco sistémico é muito baixo. “É melhor sem flúor nas crianças.” Justamente nas idades de maior risco de cárie, retirar o flúor aumenta a probabilidade de lesões. O balanço risco-benefício favorece claramente o dentífrico fluoretado com dose controlada. “Em Portugal a água já tem flúor que chegue.” Aqui convém ser factual: Portugal não pratica fluoridação comunitária da água para prevenção de cárie. O teor de flúor na rede pública é monitorizado por segurança da água, não como política preventiva — varia de forma natural e dentro de limites de qualidade. A prevenção em Portugal assenta sobretudo na pasta fluoretada e, em contextos clínicos, em aplicações profissionais quando indicadas.
Segurança: o que realmente precisamos de vigiar
Quando se fala de flúor, o grande receio costuma ser a fluorose dentária — uma alteração estética (manchas esbranquiçadas, por vezes discretas) que decorre de ingestão crónica excessiva durante a formação do esmalte. É um risco que se mitiga quase por completo com duas regras simples: usar dentífrico com a concentração recomendada e na quantidade certa, sob supervisão nos mais novos. Quanto a engolir pasta, pequenas ingestões acontecem; o objetivo é reduzi-las ensinando a cuspir, evitando grandes porções e guardando a pasta fora do alcance. Já os vernizes e géis profissionais têm concentrações elevadas, mas são aplicados por equipas treinadas, em protocolos controlados e com bom perfil de segurança quando usados corretamente. Finalmente, um apontamento útil: nas águas engarrafadas o teor de flúor pode variar — se uma criança pequena consumir sempre a mesma marca, vale a pena ler o rótulo e discutir com o profissional de saúde se houver dúvidas.
Como aplicar no dia a dia (sem complicar)
A proteção vem do hábito consistente, não de “heróis de fim-de-semana”. Duas escovagens diárias, 2 minutos cada, com pasta na concentração adequada ao teu caso, fazem a maior parte do trabalho. No final, não vale a pena “lavar” a boca com vigor: cospe o excesso e deixa um filme fino de flúor a trabalhar mais uns minutos. O fio dentário ou os escovilhões não são “opcionais”; são o acesso do flúor aos espaços entre dentes, onde a cárie gosta de começar. Se costumas “picar” bebidas ácidas ao longo do dia, tenta concentrar essas exposições, beber água a seguir e esperar 20–30 minutos antes de escovar. Em boca seca, mastigar uma pastilha sem açúcar por alguns minutos após as refeições ajuda a saliva — e o flúor faz melhor o seu trabalho. Nas crianças, a escovagem supervisionada mantém-se até haver destreza consistente; nos adultos, não subestimes raízes expostas ou restaurações extensas: continuam a beneficiar da mesma lógica de contacto frequente.
Conclusão
Flúor não é moda, é fisiologia aplicada ao esmalte. Funciona quando é usado pouco, mas muitas vezes, com a concentração certa e a dose adequada à idade e ao risco. Em Portugal, onde a água não é fluoridada para prevenção de cárie, a diferença faz-se sobretudo na rotina de escovagem e, quando indicado, em aplicações profissionais. Mitos complicam; a prática simplifica: usar flúor de forma inteligente protege dentes e raízes, reduz restaurações futuras e poupa desconfortos desnecessários.
Referências
https://www.omd.pt/content/uploads/2017/12/dgs-circular-normativa-01dse-2005.pdf
https://www.eapd.eu/uploads/files/EAPD_Fluoride_Guidelines_2019.pdf
https://www.cochranelibrary.com/cdsr/doi/10.1002/14651858.CD007868.pub3/full
https://www.aapd.org/media/Policies_Guidelines/BP_FluorideTherapy.pdf
https://rea.apambiente.pt/content/%C3%A1gua-para-consumo-humano