Saúde oral e coração: a inflamação que une gengivas e artérias
Talvez já tenha ouvido dizer que a saúde da boca está ligada à saúde do coração. Pode soar surpreendente pensar que problemas nas gengivas possam influenciar o risco de um enfarte ou um AVC, mas a verdade é que existe uma conexão real entre a saúde oral, em particular a periodontite, e as doenças cardiovasculares. Neste artigo, vamos explorar essa relação de forma detalhada e acessível, explicando como a inflamação crónica nas gengivas pode refletir-se nas artérias e no coração. Iremos falar diretamente consigo, numa linguagem clara e empática – afinal, cuidar do sorriso pode ser também cuidar do coração.
Entendendo a periodontite
Antes de mais, convém perceber o que é a periodontite. A periodontite é uma doença inflamatória crónica que afeta os tecidos de suporte dos dentes (gengivas, osso e ligamentos periodontais). Tudo começa geralmente com uma gengivite (inflamação superficial das gengivas causada pela placa bacteriana). Se não for tratada, essa infeção pode progredir e destruir gradualmente as fibras e os ossos que fixam os dentes, levando a que os dentes fiquem soltos e eventualmente se percam. A periodontite resulta de um desequilíbrio: por um lado, há acumulação de placa bacteriana na linha das gengivas; por outro, a resposta do nosso sistema imunitário pode ser exagerada ou influenciada por fatores de risco como o tabagismo, diabetes, predisposição genética ou stress. É uma condição bastante comum em adultos e, por ser uma doença inflamatória crónica, não afeta apenas a boca – pode ter repercussões sistémicas.
Sinais clássicos de que algo não está bem com as gengivas incluem vermelhidão, inchaço, sangramento fácil ao escovar, retração gengival (gengivas a “encolherem” expondo mais o dente) e mau hálito persistente. Se sente algum destes sintomas, é importante procurar avaliação de um médico dentista. A detecção precoce e o tratamento da gengivite podem impedir a progressão para periodontite. Mas por que razão uma infeção nas gengivas pode preocupar também cardiologistas? A resposta curta: inflamação.
Inflamação: o elo comum entre gengivas e artérias
A inflamação é um processo natural de defesa do organismo contra agressores, como bactérias. Na periodontite, as bactérias presentes na placa dentária infeccionam as gengivas de forma contínua, desencadeando uma resposta inflamatória local crónica. Essa inflamação não fica restrita à boca: substâncias inflamatórias libertadas nas gengivas podem entrar na circulação sanguínea e viajar pelo corpo. Com o tempo, este estado de inflamação sistémica de baixo grau pode contribuir para danos nas paredes dos vasos sanguíneos.
Imagine a inflamação como um “fogo lento” no organismo. Nas artérias, esse fogo favorece a formação de placas de aterosclerose – depósitos de gordura, colesterol e outras substâncias – que endurecem e estreitam os vasos. A aterosclerose é a principal causa de enfarte do miocárdio (ataque cardíaco), angina e AVC. Ou seja, a inflamação crónica é um elo que une a doença das gengivas à doença das artérias. Estudos indicam que a doença periodontal aumenta a carga inflamatória do corpo, o que pode acelerar o processo aterosclerótico nas artérias coronárias e cerebrais.
Outra ligação importante são as bactérias da boca que entram na corrente sanguínea. Em pessoas com periodontite, as gengivas inflamadas tornam-se mais permeáveis – atividades simples como mastigar ou escovar os dentes podem permitir que bactérias da placa entrem nos vasos sanguíneos. Foi demonstrado que certas bactérias típicas da periodontite (por exemplo, Porphyromonas gingivalis) conseguem sobreviver na circulação e fixar-se em locais distantes, incluindo nas paredes de artérias. De facto, já foram encontradas bactérias da boca dentro de placas de aterosclerose em artérias coronárias e carótidas, sugerindo um papel direto na pioria dessas lesões. Esses microrganismos produzem toxinas (como lipopolissacarídeos) e ativam o sistema imunitário, agravando a inflamação nos vasos. Em termos simples: gengivas doentes podem “semear” inflamação e agentes infecciosos pelo corpo, afetando potencialmente o coração.
Evidências da ligação entre periodontite e risco cardiovascular
A relação entre saúde oral e doenças cardiovasculares tem vindo a ser estudada há várias décadas. Pessoas com doença periodontal ativa têm, em média, um risco mais elevado de sofrer eventos cardiovasculares graves, comparativamente a pessoas com gengivas saudáveis. Diversos estudos epidemiológicos de grande escala revelaram esta associação. Por exemplo, uma investigação sueca com mais de 1600 adultos (estudo PAROKRANK) encontrou uma prevalência significativamente maior de periodontite em pacientes que tinham sofrido enfarte do miocárdio, em comparação com pessoas sem história de enfarte. Após ajustar outros fatores de risco, os investigadores concluíram que os indivíduos com doença periodontal tiveram cerca de 50% mais probabilidade de ter um ataque cardíaco do que aqueles sem problemas gengivais. Em termos gerais, meta-análises (estudos que agregam dados de múltiplos trabalhos) também confirmam que existe uma associação consistente entre a periodontite e um aumento do risco de doença coronária, acidentes vasculares cerebrais e outras complicações cardiovasculares.
Importa salientar que correlação não é o mesmo que causação. Ou seja, embora a periodontite e os problemas cardiovasculares ocorram muitas vezes em paralelo, isso não significa automaticamente que um provoque diretamente o outro. Na verdade, muitas pessoas com doença cardíaca têm gengivas perfeitamente saudáveis, e vice-versa – nem todos os pacientes com periodontite irão ter problemas no coração. Uma parte da ligação observada deve-se a fatores de risco comuns: por exemplo, fumar prejudica tanto as gengivas como o coração, a diabetes mal controlada contribui para infeções periodontais e para aterosclerose, e uma alimentação pouco saudável afeta ambos. Assim, alguém que fuma e não cuida da higiene oral pode apresentar simultaneamente gengivite e colesterol alto, mas uma coisa não foi necessariamente causada diretamente pela outra, sendo antes resultado do mesmo estilo de vida nocivo.
Dito isto, os cientistas suspeitam que a associação vai além desses fatores partilhados. Estudos observacionais rigorosos sugerem que a periodontite pode ser um fator de risco independente para doenças cardiovasculares. Mesmo após excluir o efeito do tabaco, dieta e outros elementos, mantém-se um risco acrescido nos indivíduos com doença periodontal crónica. Em 2012, a American Heart Association (AHA) analisou todos os dados disponíveis e reconheceu que a saúde periodontal deficiente está ligada a uma maior incidência de aterosclerose, embora frise que não há evidência científica de nível mais alto que prove uma relação de causa e efeito direta. Ou seja, até ao momento não se pode afirmar que “ter periodontite causa enfarte” com absoluta certeza, nem que tratar a periodontite previne enfartes ou AVC de forma garantida. O que se sabe é que há uma forte conexão estatística e biológica, e isso por si só já é importante.
Em termos práticos, a comunidade médica e dentária considera esta ligação suficientemente preocupante para justificar atenção redobrada. Não é caso para alarmismo – não quer dizer que uma pessoa com gengivas doentes esteja “condenada” a ter um problema de coração. Porém, encarar a saúde oral como parte integrante da saúde geral faz todo o sentido. Alguns trabalhos clínicos preliminares mostraram, por exemplo, que tratar agressivamente a periodontite pode reduzir marcadores inflamatórios sistémicos (como a proteína C-reativa) e melhorar a função das artérias (tornando-as mais dilatáveis). Isto sugere que ao controlar a inflamação nas gengivas, podemos também aliviar um pouco a inflamação nos vasos sanguíneos. No entanto, são necessários mais estudos de longo prazo para determinar se tratar a doença periodontal se traduz efetivamente em menos ataques cardíacos ou AVC. Por enquanto, o consenso dos especialistas é: uma boa saúde oral é mais um aliado na prevenção cardiovascular, embora não substitua as medidas já conhecidas (como controlo do colesterol, da pressão arterial, exercício, etc.).

Como cuidar da saúde oral para proteger o coração
Depois de compreender a ligação entre gengivas e artérias, a pergunta natural é: o que posso fazer a nível de saúde oral para beneficiar também o meu coração? Felizmente, as recomendações não fogem muito do bom senso que provavelmente já conhece – a diferença está em encarar esses hábitos não só como cuidados dentários, mas como parte do seu autocuidado geral. Aqui ficam algumas dicas essenciais para manter gengivas (e coração) saudáveis:
Higiene oral diária rigorosa: Escove os dentes pelo menos duas vezes por dia, durante dois minutos, com uma pasta dentífrica com flúor. Use fio dentário ou escovilhões interdentários diariamente para limpar entre os dentes, onde a escova não chega. Estes hábitos simples removem a placa bacteriana e previnem a gengivite antes que evolua.
Consultas regulares no dentista: Visite o seu dentista ou higienista oral pelo menos duas vezes por ano para exame e limpeza profissional. Mesmo que não sinta dor, a doença periodontal inicial pode passar despercebida – check-ups regulares detetam problemas cedo. Limpezas (destartarizações) semestrais removem tártaro e bactérias abaixo da gengiva, reduzindo a inflamação.
Não fume e modere o álcool: O tabaco é um dos principais inimigos das gengivas saudáveis (e do coração). Fumar favorece a periodontite e ao mesmo tempo contribui para a aterosclerose. Se é fumador, procurar apoio para deixar de fumar será dos maiores favores que pode fazer às suas gengivas e artérias. O consumo excessivo de álcool também pode afetar a saúde oral e geral, por isso deve ser moderado.
Controle os fatores sistémicos: Doenças como a diabetes devem estar bem controladas, pois a glicemia elevada dificulta a cicatrização das gengivas e aumenta o risco de infeções, além de ser um fator de risco cardíaco. Mantenha também um estilo de vida cardioprotetor: alimentação equilibrada, rica em frutas, legumes e pobre em açúcares e gorduras saturadas, bem como a prática regular de exercício físico. Isso beneficiará tanto a saúde cardiovascular como a capacidade do organismo combater a inflamação periodontal.
Esteja atento aos sinais e não adie tratamentos: Sangramento gengival, inchaço, dor ou dentes a abanar não devem ser ignorados. Procure cuidados médicos dentários o quanto antes. O tratamento da periodontite (que pode incluir raspagens profundas, alisamento radicular e por vezes antibióticos ou cirurgia periodontal) pode travar a progressão da doença e assim reduzir a carga inflamatória no seu corpo. Pense nisso como um investimento na sua saúde global.
Em suma, manter uma boa saúde oral vai muito além de ter um sorriso bonito ou evitar próteses dentárias – é uma peça importante do puzzle da saúde geral. As gengivas e o coração podem parecer mundos separados, mas estão conectados pela corrente sanguínea e pelo sistema imunitário. Uma boca saudável ajuda a manter a inflamação corporal sob controlo, aliviando um potencial fator de risco para o coração. Portanto, ao dedicar tempo e cuidado à higiene oral diária e às visitas regulares ao dentista, você está também a cuidar do seu coração de forma indireta mas valiosa.
Lembre-se: o nosso corpo funciona como um todo integrado. Uma infeção crónica numa parte pode ter efeitos noutra – e a boa notícia é que o inverso também é verdade. Ao melhorar a saúde de um aspeto (como tratar as gengivas doentes), podemos colher benefícios em todo o organismo. Cultivar esses hábitos saudáveis e estar atento aos sinais do seu corpo é um gesto de amor por si próprio. O seu sorriso e o seu coração agradecem.
Referências
Harvard Health Publishing – “Gum disease and heart disease: The common thread”. (15 Fev 2021)health.harvard.edu
American College of Cardiology (CardioSmart) – “Gum Disease Linked to Increased Risk for Heart Attack”. (27 Jan 2016)cardiosmart.orgcardiosmart.org
Niederman, R. & Weyant, R. – Evidence-Based Dentistry – “Periodontal Disease, Cardiovascular Disease, the American Heart Association, the American Academy of Periodontology, and the Rooster Syndrome”. (2012)nature.comnature.com
Mougeot, J.L.C. et al. – J. Oral Microbiol. 9(1):1281562 – “Porphyromonas gingivalis is the most abundant species detected in coronary and femoral arteries”. (2017)pmc.ncbi.nlm.nih.govpmc.ncbi.nlm.nih.gov
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Gouveia, A.R. – Lusíadas Saúde (Blog) – “Periodontite: maior risco de doença cardiovascular?”. (accessed 2023)lusiadas.ptlusiadas.pt